Gonçalo Frota iniciou-se em 1999 na escrita sobre música no jornal Blitz, tendo passado depois pelo semanário Sol e pela revista Time Out. Escreve actualmente (sobre música, teatro e dança) no jornal Público e na revista inglesa Songlines, dedicada às músicas do mundo. É o autor das notas de reedição integral da obra de José Afonso na editora Orfeu, e do prefácio de reedição do livro/disco Unreal – Sidewalk Cartoon, de Bernardo Sassetti. Recebeu o grande Prémio de Jornalismo Carlos Porto 2016 do Festival de Almada.
TEXTO DE GONÇALO FROTA
MUDAR DE VIDA
Pode uma distopia deixar o seu lugar de sociedade ficcional (concentracionária, totalitária e repressiva) para assentar arraiais na realidade? E, caso seja possível, teremos a capacidade de nos darmos conta de tal viralização apenas através de um choque abrupto? Será que até mesmo uma elevada aceleração nesse sentido nunca se sentirá como tal e poderá diluir-se na marcha dos tempos? Se nos munirmos das várias distopias que têm ocupado milhares de páginas de livros e centenas de horas de filmes, pode acontecer que as situações extremas fabricadas pela imaginação pareçam sempre distantes e se assemelhem a profecias pessimistas ou avisos para cenários catastrofistas descartados como improváveis. Só que, bem o sabemos, sem o espectro da ficção, tem a humanidade uma extraordinária capacidade de se adaptar e normalizar as mais abstrusas circunstâncias – inclusivamente o cerceamento de liberdades e direitos fundamentais, sobretudo se a isso se associar um aumento do sentimento de segurança ou a resposta a um medo irracional.
Perfilados de medo já nos sabia José Mário Branco. Talvez tenha sido o primeiro a discernir a distopia em que nos enfiámos sem nos darmos conta e que deixámos que se instalasse numa morrinha contínua, coisa pouca de cada vez. Uma distopia que foi golpeando repetidas vezes a utopia – alimentando-a, ainda assim, apenas o suficiente para que não se convertesse em desespero e revolta colectivos. O desencanto de que José Mário vinha falando nos últimos tempos era o de quem acreditava que deixáramos de tentar ser melhores, juntos, e que desistíramos de planear o reencontro num refundado humanismo. Era a história da tal experiência da descoberta do tratamento para a sífilis que o músico gostava de citar, o tratamento que teve por designação o apelido do bacteriologista alemão e o número da experiência bem-sucedida (Ehrlich 914), lembrando todos os falhanços anteriores para nos perguntar: Quando é que deixámos de tentar?
Quando é que deixámos que se infiltrasse nos gestos e na linguagem esta divisão em milhões de indivíduos que se negam uma voz colectiva? Como diz José Mário em Mudar de Vida, o seu derradeiro fôlego criativo, aquele que não sabe dar a vida por um amigo, que não se funda a si mesmo na fraternidade, “está sozinho com os outros, está sozinho consigo”. Quando é que caímos na esparrela de abdicarmos de falar em “nós” para privilegiarmos o “eu” ou o “eles”, como se não fôssemos todos parte do mesmo corpo, como se pudéssemos separar as lutas por uma maior justiça no mundo entre aquelas que nos pertencem e aquelas que nos são alheias?
Se havia desencantamento em José Mário Branco, se houve um silenciamento artístico voluntário da sua voz quando se perguntava “diante deste mundo, cantar o quê?”, se houve uma opção por delegar na sua obra passada as suas palavras presentes e futuras, houve também o diagnóstico de que caminhávamos embalados pela canção doentia e perversa do crescimento incessante, do trabalho praticamente equiparado a escravatura moderna e da nossa cumplicidade com este caminho, vencidos pelos pequenos confortos – tomados como analgésicos ou soporíferos para iludir o mundo lá fora.
Se “a vida sem viver é mais segura”, como cantava ainda em Perfilados de Medo, o último grito que ouvimos a José Mário Branco foi o de Mudar de Vida, um rugido de esperança num túnel que soubéssemos ainda escavar para sair da distopia rumo à utopia. Não podendo adivinhar estes tempos que vivemos, em que talvez um vírus tenha o condão de nos conceder tempo para reflectir sobre a normalidade a que quereremos regressar depois disto, tempo para concluirmos o quanto o toque e a presença do outro ao nosso lado nos são vitais, é possível imaginar José Mário a comover-se com as imagens recentes de uma manifestação em Israel, contra um líder político (cujo nome não será trazido para estas linhas) acusado de corrupção e instigador das maiores e mais cruéis divisões humanas, em que milhares se juntaram e avançaram pelas ruas, cumprindo o distanciamento social obrigatório.
Mudar de vida, dar as mãos para o caminho, pôr em marcha o movimento.
Mudar de vida?
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